sábado, 25 de julho de 2009

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Herança: "pegando a mala"

Anotar em um blog nos faz desenvolver habilidades como a de ouvir palavras, contemplar as coisas ao redor, mirando os detalhes, as insignificâncias, ou as desimportâncias.
E daí? Onde é que eu estava...Esta semana aconteceu um episódio engraçado, sob este ponto de vista. Acabei centrando minha atenção nos detalhes ou nas desimportâncias e não no desagradável incidente que ilustrou minha segunda-feira.
As pessoas morrem e nem sequer imaginam a trabalheira que dá completar o quebra-cabeças que deixam faltando peças. Claro , ninguém imagina que vai embarcar sem bilhete de retorno e portanto, deixa as suas peças espalhadas por todo lado. Acaba acontecendo que alguém herda o imbróglio.
Como toda família, na minha também tem dessas passagens e eu fui sorteada. O falecimento repentino de um irmão que era curador de uma tia inválida e incapaz com estrelinhas, deixou sem lenço e sem documento a pobre asilada, privada de sua pensão e por conseguinte a instituição que a abriga. Bene bene bá tu pi catz fora.Euzinha sobrei na listagem do "eu com isso" familiar. Tudo bem.
Depois de alguns toques "deadline"....

Me movi como uma tartaruga ninja, cheia de vontade de agilizar o entrave e algumas mãozinhas depois recebi um telefonema avisando que já estava tudo encaminhado e eu precisava "passar para assinar" e fornecer algumas informações.

Como todo otimista calculei logo em minha agenda o"passar para assinar" como uma passada rápida, breve, an passant, enfim. Ao invés de usar o "passar para assinar" vou substituir pela expressão " pegar a mala" porque tem muito mais sentido, posto que para mim esta incumbência é como arrastar correntes em Alcatraz. Voltemos aos fatos.
Chegando ao local referido na hora aprazada eu falei:

-Oi! Tudo bem! Eu preciso falar com o Zezinho, a fim de " pegar a mala"...( Zezinho é o nome que vou usar aqui para o funcionário que eu deveria procurar)

- A senhora precisa entrar naquela fila- disse a estagiária apontando para uma fila de cerca de vinte pessoas.

Olhei em volta:

- Mas é só para ..- tentei explicar.

- Não importa é preciso tirar uma ficha - rebateu a jovem( que eu vou chamar de Margarida, em homenagem ao Pato Donald, que tem a ver com Pato , que contém a idéia clara do fato narrado).

Percorri novamente o olhar, verifiquei a fauna e a flora presentes e me dirigi ao último lugar sob os olhares críticos dos resignados enfileirados. Passados muitos minutos cheguei novamente ao balcão onde estava a moça.

- O que é para a senhora? - perguntou novamente Margarida.

- Eu fui agendada para falar com o Zezinho porque preciso" pegar a mala" por conta de uma tia..

-Vou lhe dar uma senha e já chamo! - disse a apressada estagiária estendendo um papel escrito 12. Era o número da sentença de morte da minha tarde alegre de inverno.

Enfiei-me em um canto e fiquei esperando bovinamente. Afinal só estava um lindo dia de sol e eu tinha apenas 660 coisas melhores para fazer durante a tarde.E depois era só uma passada.

Finalmente chamou-me :

- 12, o número da besta, quadrada claro. Eu!

Corri em direção à Margarida , já com um sorriso idiota esboçando!

- Sou eu!-Exclamei exultante.
- O que é pra senhora? - Novamente perguntou Margarida.

- Eu vim porque preciso falar com o Zezinho e " pegar a mala"..

- Ah! Eu preciso de informações do processo- disparou

- Mas como eu lhe disse, é só para " pegar a mala"...
- Senhora, não é assim que funciona , primeiro a senhora precisa ir até o cartório e trazer um papel que blá blá!- Explicou-me a Margarida, com um tom paciente, mas cujo olhar cantarolava " tu não me pega pereeeba"...

Respirei fundo e pensei que não ia custar nada.Pensei nos inúmeros planos de existência e no quanto estava fazendo uma boa ação. A moça está fazendo seu trabalho, seguindo um procedimento . Ok! Você venceu, não vou ficar contrariada.Vamos ao protocolo. Afinal eu ia economizar uma quantia considerável. Fiquei quase feliz..

Dirigi-me ao cartório e solicitei a informação. Levei de volta ao estabelecimento inicial e dirigi-me à Margarida.

- Muito bem. A senhora vai ter que aguardar um pouquinho!- já foi adiantando a Margarida.

Eram 14:35, eu chegara às 13:40h, agora ia ser rápido e eu ainda conseguia manter meu sorriso de plástico ( fazendo o tipo cordata). Puro diletantismo.

Seria importante lembrar a Margarida que a minha tia enferma e inválida tinha bem mais que oitenta e que se fosse possível o obséquio, eu precisava sair dali ainda em 2009,mas temi que ela não compreendesse minha preocupação e resolvi esperar.

Encaixei-me de volta no meu canto anti-séptico e fiquei trocando de pernas ansiosa. Passaram algumas dezenas de pessoas pelo local e as fichas corriam como sopão em noite de frio,mais uma e outra e a chamada se arrastava. Começei a sentir o cheiro de gripe suína.

De repente já estamos em Stephan King " Dança da morte", parte II-A: a revanche do vírus. Os funcionários oficiais desfilavam com máscaras junto a nós , míseros plebeus pontencialmente hospedeiros do influenza.
Começei a observar a "biodiversidade" a minha volta. Dava até para gravar um curta e bem baratinho, com direito a making off e tudo. Espécies provavelmente ameaçadas de extinção Ah! Se eu tivesse trazido minha câmera.

Havia representantes de todos os segmentos. Dos injustiçados aos desocupados. Trabalhadores, escravos , camponeses, desempregados, patrícios, clientes e plebeus, cidadãos de big river city e estrangeiros,enfim.
Duas senhoras saídas da reunião do Lyons Clube, com certeza não perderam o élan( elã), nem mesmo sendo pensionistas do INSS. Maravilhosas senhoras, discípulas de Danusa Leão, mostravam claramente que não pertenciam aquela geração mal-ajambrada e espatifada pela deselegância que estava espalhada pelo recinto. Usavam o modelito de domingo para falar com a autoridade. Coisa linda. Perfumadas, penteadas e com batom cintilante , bolsa combinando com o sapato e cabelinho com fixador. Um charme de deixar orgulhosa a Glorinha Kalil.

Em contra partida desfilava pelo local um exemplar que, apesar dos 10 graus à sombra estava com metade do traseiro exposto, arrastando os chinelos e com olhar admirado para todos os presentes, no melhor estilo tudo é festa.

Um rapaz magrinho e falastrão mandava ver no setor de comunicação:
- Tem que sentar um pouquinho pra descansar o esqueleto porque a demora é longa!Tem que esperar! - Uma pérola do pleonasmo.
Uma outra mulher reclamava o puxado que construira no terreno do sogro, um outro a cobrança indevida do credi-maracutaia , mais adiante aquela posse que não está legalizada. A sobrinha de 16 que o marido deixou com o filho, levando até os móveis.
São milhares de histórias de pessoas se cruzando e misturando e resultando em causas civis, criminais e correlatas. Em pensar que acabamos nos tornando meras situações jurídicas.
Algumas histórias, na verdade, já eram de amor pelas filas, pelo papo furado e pela gratuidade do serviço. Cada um ama o que pode.

Entendi porque algumas pessoas cometem assassinatos em massa.
É um ótimo material para escrever. Fiquei pensando, se eu tivesse levado uma caderneta, mas era só uma passadinha, era só para " pegar a mala".
De repente, para aplacar a monotonia do momento chegou aquele estressado dando o golpe da hora do trabalho.

- Eu acho que não vou poder esperar...eu pego às quatro- disse o rapaz.

- O senhor é quem sabe- disse a Margarida- que demonstrava intimidade quando o assunto eram os tipos "João sem braço".

- Não dá pra agendar pra semana que vem? Não posso perder mais meu tempo- disse o homem.

- O senhor é a parte interessada,é só assinar aqui, responsabilidade sua. - sentenciou prática a Margarida.

- O indivíduo rosnou e esbravejou sobre sua história nada incomum onde combinava oportunismo e bravata, mas ao final desistiu ao encarar o olhar gélido de retroescavadeira da Margarida. Sacudiu a longa cabeleira branco-amarelada e encaracolada, esticou a jaqueta jeans sobre o corpítio de 1.65m e se foi, mais ou menos um cartão postal do inferno colorido.

Assunto encerrado.
Ainda havia uma esposa feroz reclamando dos alimentos estabelecidos pela justiça e uma estagiária que usava todo o seu latim, mais desenho e figuração para explicar que não se pode tirar leite de pedra e que alimentos não são próprios para punir ex-maridos rebeldes.

E eu não trouxe a minha caderneta rosa

Eram exatamente 16:25h quando o Zezinho apareceu e chamou o meu nome.

-Melinda Bauer!- Disse em tom solene.

- Finalmente-suspirei.

- Ah! É a senhora. Eu vou trazer o documento ( " pegar a mala"), nem precisa subir para a senhora não demorar .-Que ironia do Zezinho. O camarada deve ter grande senso de humor.

Esperar , imagina...que bobagem, nem demorou nada! Eu assinei uma folhinha e parti.

E eu não levei meu fuzil Ar-15.





    Fio  Entrei no absoluto e simples vagar do tempo. Invadi os espaços aparentes que reservei para um dia. Olhei minha própria fa...