quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Não tome um dreher.

A imagem é da Web

Havia um antigo comercial na TV, do conhaque Dreher. Em um vagão em movimento, um homem encontrava uma "bela" mulher sentada no vagão-restaurante, de costas era o tipo "avião", pra usar uma expressão adequada ao tempo. Gerava toda uma expectativa na fantasia da audiência. De repente a mulher se virava e era a versão piorada da bruxa de Blair . A proposta é essa mesmo. Tome um Dreher e a o dragão será um avião. Embriague-se, engane-se. Finja! Faça de conta! Avaliações a parte, o comercial era muito engraçado.

Por que lembrei do Dreher? Estamos vivendo um tempo inédito. Talvez inédito não seja a palavra adequada, afinal não dá para reeditar um tempo . No máximo uma releitura, um remasterizar, repaginar, revisitar. Para falar de expressões que estão na moda. Mas, em nosso atual estágio de evolução tecnológica e conhecimento metafísico, ainda não dá para retroceder no tempo ou revivê-lo.

O que eu estou querendo falar mesmo é sobre as bizarrices do nosso tempo. O bizarro de alguém não querer viver no tempo que está. No tempo biológico que está.

Esta semana eu estive um bom tempo sentada naquela terrível sala de espera de uma agência da previdência social, a fim de resolver umas questões burocráticas, por conta de uma incumbência moral que a vida me conferiu. Enfim, é uma tarefa que não cumpro com muito prazer, mas procuro fazer dela um laboratório de experiências. E lá é um local para se ver todo o gênero humano já editado. Os mais estranhos seres e casos se vê e ouve.

Estava lá eu sentada com a F-0174 em uma das mãos e um livro na outra, mas os meus olhos e ouvidos estavam atentos e muito mais interessados naquela fauna humana tão carente.

O nome do filme? Uma operadora da burocracia na vida legal de uma incapaz. Fato que por si só já é uma extravagância de boa vontade.

O tempo se arrastava e enquanto eu lia uma crônica, era o personagem de outra ou pelo menos a narradora dentro da minha mente. Procurei minha caderneta. Nada. Peguei umas notas fiscais e começei a rabiscar atrás. Viajei pelos rincões do preconceito e puxei minha orelha.

A Marta Medeiros falava sobre as avós de nosso tempo, em como se tornaram jovens e modernas . Avós que tiveram que desbravar novos desafios no prolongamento da vida. O avanço das pesquisas científicas e a medicina especializada prolongaram de tal forma a juventude que é preciso acostumar o olhar para adaptar-se.
As mulheres ganharam, em média, de dez a quinze anos de sobrevida e isto refletiu-se na aparência. Diga-se da cosmetologia ao bisturi. Da medicina preventiva aos novos conhecimentos sobre nutrição .
Nas camadas sociais mais abastadas há uma delicadeza que às vezes atenua este trânsito dos anos , mas nas mais humildes é patente o "tô nem aí". Acho que o tempo chega de repente. A brutalidade da privação não admite vacilos e como ninguém quer ser vítima da exclusão despótica dos esquecidos da modernidade, tratam logo de mudar o layout do jeito que dá.
É uma construção de estranhismos que é um estrondo, mas é um bom material para pensar na vida.
A palavra seria exagero. Uma recalcitrante negativa em aceitar o próprio tempo biológico, por mais que esteja evidente.
Por que eu falei isto? Entre os ponteiros do relógio que não se moviam e o livro que eu tentava insistentemente acompanhar, havia dois exemplos da violência contra natureza que não paravam de chamar pela minha atenção. O primeiro, uma senhora que beirava os setenta ou oitenta. Era bastante castigada pelo tempo. Carregava uma vasta cabeleira negra, longa e obviamente tingida. O manto formado pelas melenas era liso e sedoso, logicamente por conta de uma escova progressiva, definitiva ou similar. O corpo já com as formas da meia melhor idade, com o bumbum de pêra, vestia uma calça jeans adolescente e uma bata. Os lábios minguados que escondiam a prótese estavam coloridos por um batom metálico. A biologia gritava, mas não havia nenhuma harmonia . Era uma senhora de setenta e uns travestida de adolescente. Mas a juventude não está definitivamente na imagem . A juventude está por dentro.E ela portava-se garbosa. No popular "se achava". Esta mesma senhora estava com uma neta,o segundo exemplo, que por sua vez , embora portasse seus sete anos, estava travestida de mulher.
Desde o penteado até o batom, eram trejeitos de uma pequena mulher, no corpo de uma criança, com roupinhas "sedutoras".Crianças adoram imitar as mães. Isto não é nenhuma novidade, mas antes era dentro de casa, brincando com as roupas e batons da mamãe e - Que bonitinha! - diriam todos. Em nosso " Dias de dragão" esta condição foi instituída. Meninas de sete anos fazem escova no final de semana e vão à manicure. As mais desfavorecidas fazem o que podem.

E o que eu tenho com isso? Pergunto. Nada mesmo.

Fiquei tentando lembrar das minhas avós. Fiquei tentando entender o que a nossa era está fazendo com as pessoas. Que tipo de sentimento eu gostaria de gerar nas pessoas aos oitenta anos. Como eu gostaria de estar? Confesso que não é simples. Lembrei da rã do Al Gore, cozinhando na panela sem perceber. Deve ser assim. Quando chegar a perceber já está lá.
Vovôs com botox e com mechas no cabelo, músculos vestidos com pele manchada pelo tempo. É uma grande cena. Eu tive um professor que usava indumentária James Dean e seu rosto não se movia quando ele falava.
Há um certo ar de falsificação. Tudo meio postiço. Começando pela própria vida, pelos valores. Tudo um pouco incompatível. Forma e conteúdo não conseguem se reconciliar.Etapas fulminadas.
Onde mesmo estaria a placidez elegante desenhada pelo tempo em nossas vidas. São artifícios demasiado invasivos que violentam a compreensão de seu objeto.
Não quero romantizar a velhice. Claro que não. Perder a juventude não é fácil, mas também não é o fim do mundo. É preciso dirigir-se para um tempo. É preciso desvestir-se do tenro envoltório da juventude e revelar o conteúdo. Eu penso, que envelhecer é revelar, descobrir finalmente. Tirar a maquiagem. Ser o que finalmente somos .
Por alguma razão isto tudo me pareceu, como parece, antinatural.
Acho que estamos vivendo um tempo antinatural. Uma desordem onde o poder é o império da estética. Não se tem licença para abandonar a casca, a frescura , o viço.
Ainda me sinto mais confortável ao ver os olhos ternos , a expressão de paciência e sabedoria. Quero crer que ao transpor o tempo de uma longa vida uma pessoa possa permitir-se ser nua e cruamente o que é, sem sentir-se em débito consigo mesma por deixar que as marcas apareçam. Não digo que não possa haver paixões. Certamente sempre há paixão, mas este tipo de fissura não combina. O texto é de outra peça . Lamento.
Alguma coisa me diz que não vai ser por aí que vamos conquistar a fonte da juventude. Ela é mais sutil.

Sendo assim, ficamos combinados: nada combinado!

Só queria mesmo era saber como me sinto e francamente não sei! beijo duvidoso

da melind@







    Fio  Entrei no absoluto e simples vagar do tempo. Invadi os espaços aparentes que reservei para um dia. Olhei minha própria fa...