sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A didática da boca do lixo ...

Eu sempre tive uma forte atração pela boca do lixo, indo um pouco além do que é apenas marginal. Endenda-se boca do lixo como tudo aquilo que se encontra no submundo das aparências ou nas entranhas do ilusório. Grifadas as palavras entranhas e submundo. Se começarmos a retirar as camadas que se sobrepõe aos fatos, revestindo-os de uma infinidade de versões, vamos encontrar o que eu chamo de boca do lixo. São os vestígios da debilidade de todas as esferas. Aliás eu diria que o lixo de uma sociedade fala muito. Mas não é ao lixo literal que me refiro e sim ao descarte de conteúdos que não queremos ver no nosso cartão postal.
Acostumamos a ver e entender certas coisas de um jeito e quando nos deparamos com o lado B parece inconcebível. Gosto de passear pelas fragilidades, pela falta de modos ou ainda pelo inapropriado. Preciso ouvir a frase errada, sentir o cheiro passado do que já parece não prestar mais. Instigar cada parte do psiquismo. Desconstruir a engrenagem .Olhar de canto o desvio de caráter e a fraqueza. Ela mesma, temida e execrada pelos bons.
Acho que a sensação de intimidade com este 'domínio' se dá pela mistura de brutalidade com sinceridade que está presente em situações extremas. Estas considerações me vieram a mente através do  filme "Biutiful"-escrito assim mesmo-de Alejandro Iñarritu que percorre este caminho rumo aos locais mais recôndidos da natureza humana.
O filme trata especialmente de um momento excruciante e presente que a história está perfazendo que é a crise européia. Os efeitos indesejados  do remédio amargo da imigração e suas políticas desesperadas, dos cortes no modelo de bem estar social , da globalização com desemprego e da máfia purulenta que brota do subterrâneo da ordem prescrita.
É um ato corajoso soprar o castelo de cartas e ver pelas visceras a grande questão que vem se confrontando com os governos dos países europeus e que parece mudar o curso da ordem mundial lenta e dolorosamente.
O crescimento dos cinturões de marginalizados , os movimentos xenofóbicos, a desconstrução de valores e paradigmas , enfim a decadência de uma sociedade milenar que parecia inabalável. As rodas da história mais uma vez estão demonstrando que nada é para sempre e o apogeu das civilizações é completamente efêmero e ilusório.
A espécie humana é dotada de uma natureza indômita que se for submetida a determinadas condições de temperatura e pressão , leia-se crise, manifesta reações idênticas independente do tempo, como se fosse atávico. Isto fica patente no filme de Iñarritu.
Apesar da crítica não ter sido favorável achei o filme uma excelente oportunidade de fazer um tour pelas realidades cruas que lá , como aqui sempre achincalham os  mais frágeis e desfavorecidos. Sinto que ficou faltando concluir este raciocínio.
O contraponto foi assistir Baária-A Porta do Vento,  do adorado Giusepe Tornatori do meu inesquecível Cinema Paradiso.
Em Baária uma versão nostálgica e cheia de licença poética mostra uma sociedade com suas inaceitáveis transgressões,  mas dentro do tolerável nas lentes de Tornatori.
É preciso esquecer Cinema Paradiso para gostar de Baária (como se isso fosse possível), uma viagem pelos ventos através de gerações  conduzida por Peppino.
Estão presentes em Baária alguns ingredientes semelhantes aos de Cinema Paradiso, como o cinema e a nostalgia das escolhas que a vida nos impõe. O filme percorre as mudanças  históricas do período Segunda Guerra  até chegar a atualidade, só que coloca esses acontecimentos em um plano secundário.
São enfoques de duas grandes mentes do cinema, duas gerações e lentes, embora totalmente desalinhadas e que conseguem surpreender pela viscerotomia da vida em seus personagens.
O interessante é que minhas incursões pela boca do lixo sempre são muito aclaradoras, como se eu trouxesse de lá  um bocado de compaixão por minha ignorância e até me convertesse a uma nova concepção do velho e rançoso homem civilizado.
Meus instintos se amotinam contra a viabilidade comportada do mundo.

    Fio  Entrei no absoluto e simples vagar do tempo. Invadi os espaços aparentes que reservei para um dia. Olhei minha própria fa...