domingo, 21 de março de 2010

Um gato entre os pombos



O jogo das palavras pode ser como uma trama de Agatha Christie. No desenrolar da língua as palavras vão mudando suas posições e o culpado pode vestir todos os personagens até chegar a desvendar os fatos que envolvem uma circunstância. O assassino quase sempre é alguém acima de qualquer suspeita.

O detetive, por sua própria natureza indagativa, minudente e perquiridora, também será suspeito em algum ponto.


Onde tudo começou..

A palavra negatividade caiu sentada no meu colo ontem à tarde e sacudiu as frases enroscadas em meus pensamentos. Negar atividade, não agir, não reagir, não acreditar, não creditar a si mesmo. Minha antítese.Criar uma espécie de esponja gigantesca que absorve e retém cada gota até chegar a saturação( encher inteiramente, ação demais).

A palavra negatividade passou pela minha língua e em uma eureka óbvia pensei:

- A minha negatividade é a minha negação. A minha parte negativa, minha ausência, encolhimento.


Bom, onde entra a Agatha Christie?

Estava em frente ao caixa eletrônico pronta para fazer um saque. Entrei na agência, o primeiro terminal estava com problemas , fui para outro. Percebi que havia uma pessoa ao meu lado.

Segui com a operação , fiz o saque e quando estava guardando minha carteira ouvi uma voz quase sumida que mansa e suavemente tentou as seguintes palavras:

-Ah moça, desculpe lhe atrapalhar, mas , olha, eu estou cansado e não está dando certo. Será que a senhora poderia me dar uma ajuda?

A palavra cansado abraçou-o inteiramente.

Voltei-me para o homem e vi um senhor que já beirava os oitenta, talvez um pouco menos de tempo e um tanto mais de dureza.

-Pois não , senhor, não há problema. O que o senhor quer fazer?- respondi.

Ele trazia um papel amarrotado dentro de uma pequena caderneta onde anotara as senhas.

Os dentes gastos pela bomba de chimarrão, a pele castigada e brilhosa e a cabeleira branca um pouco crescida não lhe tiravam a simpatia. Os olhos fundos e pequenos carregavam seu tom de aborrecimento.

-Moça, eu estou vendo que tem seis reais na conta, mas eu não consigo tirar. A mulher falou para eu pegar o dinheiro, mas não consigo, já tentei muitas vezes.-Disse o velho homem.

Olhei para dentro, para minha negação. Visualizei os olhos do meu orgulho e do meu amor próprio. Foram estes, enquanto instinto humano que ficaram machucados. Pensei que poderia ter ouvido errado. Será que seriam seis reais?

Eu vi no homem de idade, que não se deixou derrotar pela máquina, apenas a humildade e a necessidade. Aquele valor já tinha destino.

Enchi a minha cara com um sorriso e respondi:

-Vamos procurar uma máquina que tenha notas de cinco e um real. O terminal que o senhor está usando só tem notas de dez e cinquenta, expliquei.- Não encontrei uma máquina com notas de um real, mas de cinco...

Fiquei consternada. Pensei em oferecer-lhe ajuda, mas não achei que seria adequado, talvez lhe ferisse a dignidade. Fiquei duelando com meus argumentos pífios. Não cabia. Ele apenas queria sacar a quantia. Os últimos reais do mês para alguma despesa.

-Vamos lá então, coloque o cartão....retire o cartão...saque...senha...senha de letras...valor...cinco ..entra...aguarde o processamento de sua solicitação. Ufa! Vai funcionar.

Ao ver os cinco reais cuspidos pela máquina pareceu-me a nota mais linda de cinco reais que eu já havia visto. Sorrimos. Ele agradeceu:

-Muito obrigado. Muito obrigado mesmo. Um bom descanso para senhora.- Disse.

-Obrigado, para o senhor também.- Respondi- Então eu vou indo. Tchau!

Eu é que agradeço( pensei) a oportunidade de poder ajudá-lo. A oportunidade de levar um tapa na cara da minha negatividade. Tenho certeza que o senhor foi muito mais generoso comigo. Ofereceu, de graça, uma lição sobre simplicidade, dignidade , afabilidade, benignidade e um sem número de atributos que me mostrou naqueles momentos.

Minha negatividade dissipou-se pelo ar.

Salvou-me de mim mesma e de minha mesquinhez estreita.

Fim do romance.

Mas onde mesmo entra a Agatha Christie?
A criminosa..

Horas mais tarde, o susto. Por alguns instantes .....

No caixa da farmácia abri a carteira para pagar minha compra e caiu uma nota de cinco reais. Rosa escura, azulada, linda , turva. Meu coração se acelerou. Pensei o pior!

Não é possível!Me tornei uma punguista! Tomei a última nota daquele pobre homem? Pânico.

- Eu não seria capaz!

Será que em um momento de inconsciência deixei Jekyll se apossar de Mr. Hide?

Uma delinquente furtando os últimos trocados de velhinhos em caixas eletrônicos.

Calculei que a nota estava muito para fora e era muito parecida.Travei! O negativo engoliu o positivo naquelas palavras.

Era preciso chamar o Detetive Parker Pyne, da diva Agatha Christie para elucidar a trama.

O tiro saiu pela culatra. De uma história bucólica sobre bons velhinhos para uma delinquência sórdida, pérfida e cruel. Eu não acreditava. Eu era a vilã.

Imaginei o velhinho na agência com a polícia a procura de uma ladra de notas de cinco reais. As sirenas tocando e eu, a meliante, me esgueirando como uma fugitiva pelos becos da cidade.

Em poucos instantes as palavras jorravam como um turbilhão. Resolvi compartilhar minha desdita com a funcionária do caixa da farmácia porque quando me escuto me devolvo....

Aqueles segundos de eternidade certamente valeram mais uma ruga . Fiz uma retrospectiva minuciosa das últimas vinte e quatro horas , uma pesquisa dos meus gastos. De repente cheguei a um homem de farda azul-marinho me estendendo um cartão de estacionamento.

-Shazan! Chuck e Nancy se encontram e os anéis se unem!!!

Era o guarda que me vendeu o cartão de estacionamento da zona azul. Meu redentor. Ele me deu de troco duas palavras nobres de absolvição:

-cinco reais!

Pois então , meu caro Parker, mais um caso solucionado e todos viveram felizes até a próxima...

mas minha parte negativa é a minha negação..

beijo negado

da melind@

    Fio  Entrei no absoluto e simples vagar do tempo. Invadi os espaços aparentes que reservei para um dia. Olhei minha própria fa...