sexta-feira, 30 de julho de 2010

Na curva dos acontecimentos encontrei Clarice...



Por vezes eu me paro a observar a curva dos acontecimentos. Como seria esta curva?
Há momentos em que você se depara com uma sucessão de fatos encadeados inesperadamente. Algo rabiscado na orelha de um livro.Uma esquina onde distraidamente esqueceu de dobrar , uma gaveta aberta ou um telefonema. Eu diria que encadeados pelo acaso. Pelas linhas que tecem o pano dos acontecimentos. Também poderia ser uma conspiração mundial pra você acreditar que está vivendo um filme de ficção. Que a vida é ficção e que todas as alternativas sempre podem estar corretas.
Estava lá eu vasculhando uns trecos e achei esta prelucidação da Clarice Lispector me falando sobre as coisas que eu tanto tento dizer e não consigo.Como é que ela adivinhou? É claro que eu estiquei a mão e toquei.. Ou melhor, fui desencontrada, como no conto "Amor" da mesma autora, quando ela viu do bonde um cego na calçada( Leia o conto! Oras!). Primeiro senti um ímpeto de engolir em seco, mas deixei a saliva encher minha boca. A Clarice foi meu cego na calçada. Foi o ataque terrorista à torre mãe.Ouvi o que ela tinha a dizer e senti um desarranjo na minha frase. Decidi que nunca mais teria certeza. Que bom! Não desejo mais a resposta certa. Nem quero a resposta , porque ela está em toda parte de mim. Da-me tua mão.. Dou a mão mas não preciso entender, porque entender não é o bastante. Vasculhei as notas das músicas sobre as ondas do ar, penetrei nos espaços entre a carne e assenti que queria estar ali, nos interstícios da matéria primordial. Ali na linha onde passa a curva dos acontecimentos , onde tudo respira e ganha sentido porque não pode ser entendido. Quero estar entre o número um e o número dois. Estar depois do ponto que une dois pontos. O limbo é infinitamente mais promissor do que o portal das palavras.A idéia apenas segue o sentido da curva respirando o mundo e penetrando em seu silêncio pujante. Na curva dos acontecimentos encontrei Clarice, que é sempre uma forma de olhar a própria experiência e contemplá-la. Contemplá-la.Contemplá-la através dos olhos de Clarice.

Inspirada no poema "Da-me tua mão" da Clarice Lispector


Um beijo inconsequente

da melind@

quinta-feira, 29 de julho de 2010

AmEaÇa

A sequência de assaltos às residências aqui na minha redondeza está me tirando o sono. Literalmente. Penso que durmo enquanto escuto os barulhos da casa. O farfalhar da coberta. A respiração. A folha que cai da Pata de Vaca sobre o muro ao lado. Sobressaltos enquanto o vento sacode uma janela . Atenção aos passos que se arrastam longe na calçada. Tudo pode ser o início de um pesadelo. De algum lugar a razão pensa em qualquer atitude de defesa. Para onde correr?
Como podemos viver assim? Não há limites para o banditismo.São destemidos os indivíduos que perpetram crimes desta e todas as ordens. São intrépidos e desvestidos de alma. Não podem mais acreditar em suas vidas. Estão dispostos a qualquer enfrentamento. Uma câmera, um cachorro. Não existem fechaduras indecifráveis. Estão armados de ódio. Estão autorizados pela total falta de limites.
Uma janela quebrada, um alarme soando, dois. Sensores, trancas, grades. Não importa se todos acordam. São alguns minutos o bastante. Recolhem qualquer coisa que possa ser parte do escambo pela droga. Qualquer coisa que possa ser negociada com a corrupção do submundo. Fazem disso seu "ofício".
Do outro lado restam pessoas esvaziadas. Tomadas nuas no meio da noite . Arrancadas de seu sono pelo medo. Corações acelerados. Adrenalina e calafrios. Por seus filhos chorando. Cães latindo furiosos. Nada obstaculariza o intento . As pessoas estão sós. Estão abandonadas com suas grades, seguros, cães e todos os pontos de alarme da casa. Estão por sua própria conta, assim como os garotos perdidos que estão do outro lado da janela.
É um momento de atitudes extremas. Estamos todos em uma guerra velada. Uma peleja pela sobrevida que ainda nos resta diante da ameaça que ronda pelas ruas . Pode-se ouvir um tiro. Pode ser que amanhã no jornal esteja estampada a foto de alguém com uma cara boa. Podem estar as iniciais de um moleque que também jogava bola num campinho aos Domingos. Ficamos entrincheirados até que o tempo nos diga que ainda não foi desta vez. Até que se rompa a expectativa.
Não sei o que sentir. Não há lado para escolher. Fico aqui disfarçando meu medo e vasculhando uma forma de fugir.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Descoberta

Ela ainda não entendia o porquê de toda aquela adrenalina. Simplesmente começou a anotar num Blog. Assim, depois de romper com uma situação. Decidiu fazer um novo pacto. Um pacto com a Palavra! Achou que aquilo fosse uma atitude inconsequente, que iria cansar logo e acharia tudo uma bobagem. Afinal nunca tinha persistido em outros projetos loucos. Seria mais um capricho . Um lance de descoberta que logo ia virar um endereço vazio. Tipo "ops o internet explorer não conseguiu localizar ..." Os dias foram passando e os verbos eram imperativos demais. Cada vez sentia-se mais atraída por aquele instante . Aquele de abrir uma nova janela e cuspir seus pensamentos no teclado sem pudor. Passou a cultuá-lo. Aquele Ato. Como na sequência de uma peça teatral. Era quase uma liturgia. Era uma conversa com sua fantasia . Queria eliminar os gerúndios. Era um monólogo se desenrolando de dentro dela, para além de seus ouvidos obstinados. Reencontrava personagens de livros e crônicas. Todos eram experimentados. Revisitava histórias. Assim sem promessas.Tinha licença para revelar os segredos que não conhecia. Credenciava-se agora para interpretar as evidências. Aos poucos foi abandonando a trava de principiante e apaixonando-se pelo estado de coisas que brotava daquela condição. Queria contar seus truques . Flertar com o vexame. Escrever era libertador. Acordava com as palavras andando sozinhas dentro dela. A febre não passava e ia ficando inquieta, ia sufocando de tantas palavras ruidosas . Quando não apareciam ela ficava agitada do mesmo jeito , carecia pensar em algo para satisfazer aquela inquietação barulhenta que podia ser auscultada latejando nas pregas vocais e vibrando na sua faringe. Estava viciada nas palavras. Necessitava delas assim mesmo, sem ser meticulosa, sem cautela . A desordem das palavras a ordenava . Precisava delas. A evasiva das idéias a preenchia e alegrava. Tinha que se entregar ao faz de conta. Tinha que se repetir. Deixar que suas personagens tomassem conta da caricatura que ela sustentava. Escrever decifrava a trama e desmascarava a farsa. Pensava desde criança em como o mundo podia continuar tão vivo e acontecer enquanto ela estava em casa . Como tudo poderia acontecer sem que ela contasse ? Mesmo que fosse para ela mesma. Seria como se estivesse morta. Como se não se importasse. Enfim, respondia às perguntas que observavam as pessoas silenciosas passavando pela rua. Estava autorizada a explicar aquele olhar que ontem à noite parou no seu ou mesmo a representar a tristeza que percebeu nos lábios calados da dor. As respostas estavam ali. Não importava o que escrevia . Não importava se o texto fosse ruim. Idéias não se repetem.Como a vida. Como Palavras enfarpeladas... São infinitas. Escrevia porque não sabia pescar e nem colecionava nada. Não conhecia um jeito melhor de fotografar a vida. Descobriu que aquele vício era ela. Ela era o vício e a cura.

Deserto

Meu verbo é tímido e inseguro,

transpira verdade em versos

poucos pois tem a palavra

vasta pra se esconder



Se traduz no vapor das letras

de um dialeto que

não sabe falar

só faz sentir e soletrar



Basta a sala fechada

a deixá-lo embriagado de

tanto se investigar e



quando a luz insiste em entrar

ilumina o vapor sólido e se põe

a revelar as cores das impurezas que

se mesclam e elaboram


Diz que busca o entendimento

pra não se encontrar



O verbo encantado fica tentado a

tão somente divagar

mergulhado na própria densidade

equivocada que esculpe uma busca

de arrepiar ..

E assim se perde no vento


de verdades que não pode encontrar


O tempo a lhe procurar


como se houvesse um jeito


de esperar um pouco


Nasce um deserto imenso e árido


de sentido,com as cores fustigadas de contradições,

onde não há sombras pra se esconder,

Este é o refúgio manso e intenso do intervalo

entre dois fatos, dois atos,

duas vidas...

domingo, 25 de julho de 2010

Saudades do futuro que acreditei...

"E é só você que tem a cura para o meu vício/
De insistir nessa saudade que eu sinto/
De tudo o que eu ainda não vivi. "
Renato Russo


Hoje eu conheci pessoalmente, por acaso, uma doce professora de alemão, de seus setenta e poucos anos, talvez oitenta. Destas pessoas que imediatamente evocam qualidades de um tempo.Em poucos minutos viajei por suas décadas e vislumbrei com saudades um tempo que nunca vivi.Talvez pura nostalgia. Lembrei de meus pais.Uma sensação estranha esta. Existem pessoas que se traduzem de uma forma tão própria que fica impossível reproduzir.

A geração que viveu na primeira metade do último século tem uma marca muito clara sobre a história que estamos colhendo agora. É possível sentir quase que fisicamente a vigorosa força construtitva que imprimiram ao mundo.

Aqui, em Bigrivertown, uma cidade antiga com função histórica muito bem definida, há um lamento saudosista dos tempos glamourosos que se foram . Algumas pessoas se tornaram museus históricos em carne e osso. Já restam poucas para falar da famosa Gruta Baiana, visitada por turistas internacionais ou ainda da Confeitaria Sol de Ouro, cujos doces tinham fama internacional. As grandes noites do Teatro Carlos Gomes, que cheguei conhecer já um pouco destruído. Também dos áureos tempos do Teatro Glória ou do Café Dalila(meu contemporâneo).Um tempo onde comprava-se em armazéns , como o Sete de Setembro , do seu Elisiário, marido da Dona Júlia, que comprava suas frutas e legumes de um Verdureiro que vendia de casa em casa com uma imensa carroça, abarrotada de delícias frescas e gostosas. Tempos de retirar livros da antiga Biblioteca Pública. E andar de Bonde?

Um porto de grande visibilidade e rotatividade que era inclusive rota do turismo internacional.

Me chamou atenção este encontro justamente porque a cidade está vivendo um momento de reaquecimento. Infelizmente não do ponto de vista cultural. Não sob o ponto de vista da cordialidade e urbanidade. Resta apenas um cinema na cidade e outro no balneário, mantido valentemente por seu proprietário, durante os bons e difíceis tempos vividos pela sétima arte(no velho estilo). O Teatro Municipal(único) vive altos e baixos, é de tamanho pequeno e não comporta grandes espetáculos. O número de habitantes multiplicou-se , o trânsito tornou-se caótico e as motos entulham a face urbana e empoirada dos prédios misturados. Cidade Velha. Cidade Nova. Fachadas antigas alternadas com prédios modernos. Lâminas de asfalto contrastando com ruas calçadas com paralelepípedos( palavra que adorava usar para brincar de forca quando era bem criança).

Alguns patrimônios resgatados subutilizados.

A forte presença portuguesa que aqui fincou suas raízes e da qual sou remanescente começa a perder-se em ruínas e grafites mal ajambrados.

A influência dos imigrantes europeus que vieram trabalhar nas fábricas que despontavam aqui no antigo distrito industrial é evidente no capricho estético das imagens do passado.

O belo canalete das Hortências transformado em esgoto e lixão.

A história das coisas anda pelas ruas , sob o sol, derrama-se pelos cabelos brancos com a solidez das mãos trêmulas da professora de nome forte. Narrou com finura sua curiosidade ao conhecer Dilermando de Assis, protagonista da trama que ceifou a vida de Euclides da Cunha e que aqui esteve "degredado" por um tempo. Personagem das perseguições sofridas pelos imigrantes alemães no período Vargas, presenciou com a mesma envergadura os momentos em que viu achincalhada sua família, por conta da origem alemã, enquanto o mundo voltava-se contra o totalitarismo e se deparava com o holocausto. Tempos dominados ainda pelo ranço oligárquico da República, sob o governo do populista Getúlio. Assitiu impassível os revezes que a vida lhe mostrou. Vigorosa como toda verdade, ela não se repete, mostrar-se sem pudor.

Revelou sua história sem parcimônia, mas com a prudência e a sensatez dos sábios.
Ela conversa na calçada, é carregada pelo vento e entornada nos ouvidos vazios da grande maioria dos habitantes a procura de suas rotinas frenéticas. Perde-se um tesouro.

O passado anda de braços dados com ela, em seu rosto e pelo seu corpo encurvado e sóbrio. Um passado revelado pela sabedoria que colheu de suas vivências.

A contemplação das eternas contradições em nossa cultura.

A verdade é frugal, sem tempo para teatros. É simples, como tudo deveria ser. Apenas é.

Holofotes no crime.


Estas últimas semanas foram marcadas por crimes brutais , carregados pela violência e frieza, mas que não são novos e muito menos diferentes dos que vem sendo cometidos há séculos. Entretanto estava na boca de cada indivíduo a história do goleiro envolvido no homicídio da namorada. Na fila do banco, no salão de beleza , na ante-sala do consultório médico e até ( tristemente) em conversas entre crianças e adolescentes. Goleiro-futebol, Futebol-torcida, Torcida-criançada.

Da mesma forma estava outro crime em Guarulhos da advogada Mércia assassinada supostamente pelo ex-namorado. E assim repete-se a cada vez que um fato lamentável passa a ser turbinado pela mídia e vira comoção nacional .

Enquanto isso , a pouco mais de dois meses das eleições o que menos se destaca é o prato principal . Os candidatos e seus projetos de governo.

No nordeste o voto-bolsa-família, no Rio o coronelismo dos líderes do tráfico nas favelas e tudo continua como d'antes do quartel de Abrantes.

Os séculos que nos trouxeram até aqui contam as duras conquistas galgadas pelas mulheres, todas a custa de muita luta e dor. Entretanto quando tomamos conhecimento de fatos como os veiculados nestas últimas semanas envolvendo ídolos do futebol (questionáveis ídolos), concluimos simplesmente que um pouquinho abaixo da superfície do tecido social ainda somos(mulheres) vistas como cidadãs menores. Muito pior do que isto, nos acreditamos cidadãs menores.

O que leva alguém a permanecer ao lado de um companheiro apesar da humilhação, do medo e dos maus tratos? O que será que explica este tipo de sujeição?

Esta semana que passou eu estava em uma sala de espera enquanto rodava um desses programas sensacionalistas focados no dia à dia violento de alguns bairros da periferia de São Paulo. Prato cheio.

A equipe do programa acompanhava a viatura da polícia militar enquanto atendia uma ocorrência.
Ao chegar ao local a viatura encontrou uma mulher, vítima de agressão por parte de seu companheiro. De quebra o agressor bateu também em um vizinho e provocou alguns danos materiais .

Enfim, quando a vítima deu com a polícia e as câmeras desandou a correr pela rua como se estivesse soltando pipa. Corria de um lado a outro e gritava com o companheiro agressor que havia sido apanhado e imobilizado pelos soldados da brigada.

A mulher achincalhava o agressor à distância enquanto corria e pulava.

- Charles(aqui te batizo). Agora eu quero ver tu me dar porrada.- Cantava marra.

O agressor permanecia escondido atrás da gola como se nem fosse com ele . Olhar distante e constrangido.

Alguns vizinhos(prováveis testemunhas da violência cotidiana) vieram dar opinião enquanto o repórter repetia propositadamente as características do fato.

O soldado pacientemente tentava explicar à mulher que era preciso ir a delegacia fazer um boletim de ocorrência.

-A senhora está me entendendo?- repetia o militar.

E a Shirlei( aqui te batizo) continuava a correr e esbravejar sobre o Charles indefeso como um cordeirinho na outra calçada.

O soldado insistiu na ocorrência e a Shirlei simplesmente respondeu:

- Eu tô te entendendo meu querido. -ofegante- Não precisa ir na delegacia, eu só não quero mais apanhar dele!

Na verdade a Shirlei não queria perder seu companheiro, nem puní-lo, apenas cessar de apanhar. Queria muito pouco, apenas encolher-se com o que lhe cabia do mundo.

A polícia só estava ali apimentando o cenário entre ela e seu Romeu-algoz.

Esta pequena tragédia urbana selada pela fragilidade humana não é privilégio da miséria. Ela é parte da realidade de milhões de mulheres, das mais humildes às celebridades mais impensáveis.Relações perigosas das vítimas com seus carrascos.

Todas mulheres, todas abrangidas pelas mesmas instituições sócio-políticas e , ainda assim , caladas pelo fantasma do medo e da baixa autoestima. E sabe lá o que mais.
Lembro de uma minissérie da Globo chamada "Quem ama não mata" cujos protagonistas eram Marília Pêra e Cláudio Marzo. Excelente descrição de Euclydes Marinho, dirigida por Denis Carvalho e Daniel Filho. Foi em 1982 e me chocou bastante por eu nunca ter vivido qualquer contato com aquela realidade. O título se originou dos protestos em pichações contra crimes passionais (muitas vezes justificados pelo chauvinismo da defesa da honra machista), como o assassinado de Angela Diniz por Doca Street.
Parece que desde então muito pouco mudou. Ainda se lê fatos idênticos cujos criminosos ficam impunes, como o "recente" assassinato da jornalista Sandra Gomide pelo jornalista Pimenta Neves.Apesar de réu confesso, não há condenação.
Relações patológicas que não parecem explicáveis, repercussões absurdas e insolúveis. Até quando?
beijo passional
da melind@

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