domingo, 20 de junho de 2010

A Menina falante...feliz aniversário

As vésperas de completar dois anos de idade ela travava sua batalha pela sobrevivência naquela noite fresca de outono contra seu arquiinimigo e único companheiro, o irmão de quatro.

Ambos corriam pela casa aos sustos , ele fingia-se de monstro fixando os olhos arregalados e caminhando atrás dela com os braços estendidos para frente e as pernas duras ( como um morto-vivo), ela soltava gritinhos de medo e risadas enquanto fugia.

Eles disputavam cada "quark" da atenção da mãe, que era tão ocupada. Ela, a caçula, garimpava o que sobrou do filho primeiro, sempre o mais desejado e amado pelas mães. Seu irmão loiro de olhos grandes e belos cílios era magro e frágil, tinha os traços maternos(ponto para ele) e era ostentado como uma medalha.

O Garoto ainda tentava recuperar o tanto de atenção que lhe fora levado pela chegada daquela pequena e barulhenta intrusa, que completaria dois anos no dia seguinte. Ela trouxera um mundo de choros, manhas e fraldas, uma mãe atarefada e impaciente que se dividia entre o trabalho , a casa , o pequeno comércio de queijo e manteiga e os dois tesouros de sua vida. Ah, o pai, é claro, se conformava com o que lhe cabia.

Naquela noite em especial estava atolada em massinhas, confeitos e coberturas que iriam colorir o segundo aniversário da sua menina que falava como um adulto- como a mãe gostava de contar.

Tinha aqueles cabelihnos castanhos muito lisos e brilhantes que não aceitavam cachos e nem seguravam os enfeites que a mãe colocava com tanto apuro. A menina falante de olhos castanhos fundos e sobrancelhas grossas ocupava muito espaço no pequeno endereço da família.

Já passava muito das oito e a leiteira velha de alumínio grosso fervia o leite engrossado com aveia que a mãe colocava na mamadeira dos pequenos. Já haviam tomado o banho e vestiam seus pijamas de flanela leve. Ela gostava de tê-los quentinhos porque a casa era fria.

O pai ainda não chegara mas tudo estava primorosamente organizado , como costumava ser. A mãe tinha mãos mágicas, como toda mãe. Guardanapos engomados , toalhas muito brancas e macias, parquê encerado como espelho.

Haviam começado a tocar as batidas do relógio carrilhão de mesa alemão que o pai mantinha como uma jóia, britanicamente soando a cada trinta minutos, quando uma a pequena correu aos gritos em direção à cozinha a procura do colo da mãe. Atrás vinha o irmão vestido de seu personagem assustador, a múmia.

Acho que foi Nietsche quem falou que quando você olha através do buraco, o buraco também olha através de você. Pois foi neste pequeno lapso de segundos que o acaso mudou o rumo previsível daquele ano de 1966.

Naquele preciso instante a mãe lembrou de apanhar um pano de louça e afastou-se do fogão, deixando o leite com aveia fervendo em fogo brando. Foi neste momento que o imprevisível trouxe a pequena aos trambulhões (esqueci de dizer que ela sempre foi atrapalhada). No lugar da mãe jogou-se para o fogão Wallig branco e para a leiteira fervente. A leiteira rodopiou com o impacto e escolheu o lado mais improvável para virar.

O conteúdo fervente entornou sobre seus cabelos castanhos e brilhantes, seu rosto, penetrou o pijama de flanelas xadrez e abraçou seu corpo. Do vazio ela só sentiu aquele calor que doía, o medo por ter feito algo errado e o tempo parou naquele segundo. Não havia ninguém -pensou- naquele segundo estava só.

Os risos foram substituídos pelos gritos estrangulantes que lhe renderam uma pequena hérnia inguinal. O mundo escureceu. Era seu aniversário.

A mãe voltou-se para aquela cena e sentiu a pior dor que já experimentara. Movida pelo instinto tomou a pequena nos braços , cortou o pijama com uma tesoura removendo-o das partes onde conseguia com um pote de creme da Helena Rubstein. Besuntou o pequeno corpo seminu entre gritos e lágrimas e enrolou em um lençol branco impecável.

- Socorro!- só uma mãe é capaz de correr pela rua assim.

Foi o Galaxy do seu Antoninho que a levou ao hospital embrulhada naquele lençol alvo, um corpinho nu soluçante no colo da mãe.

Foram cinquenta dias de dor, febre e convulsões. Por alguns momentos não sabia muito bem se estava sonhando e o irmão desistiria de assustá-la e apenas sorriria.

Pessoas estranhas entravam e saíam. Ataduras, curativos e visitas chorosas, muitas visitas lastimosas.

O hospital, dirigido por irmãs de caridade, como a mãe falava, era habitado por bruxas e fadas, algumas eram as duas coisas.
Restou-lhe na memória o aniversário sem bolo e velinhas. Sem parabéns. Duas bonecas se perpetuaram em seu imaginário(as que podia brincar). Uma chamou de Dalila, era pequena e usava uma touca de pélos de inverno, a outra era gordinha e vestia um maiô amarelo, tinha um coque como o da Vilma dos Flintstones, ela a chamou de Tânia.

Naqueles cinquenta dias ela foi o ser mais importante para a mãe. Era o ser mais importante do mundo, considerando que o mundo era apenas um grande hospital. Seria inesquecível.

A mãe, não parava de se surpreender com aquela menina falante que perguntava afetadamente ao médico:

- Doutor, será que eu vou morrer?- contava.

A menina falante também usava o verbo para para mostrar os poucos "nomes feios" que aprendera com o tio Paulo, o irmão mais jovem de sua mãe. Era sua arma contra os castigos da bruxas.

-Tão pequenina e com tanta maldade no coração- disparava a irmã Isaura - chefe da ala onde estava "internada".

A mãe temia que ficasse com marcas e não suportava pensar que a pequena aniversariante tivesse cicatrizes maiores que as lembranças daquele dia .

A natureza inteligentemente encarregou-se de jogar-lhe as cicatrizes para o braço direito e para a pele da parte inferior do queixo a medida que crescia. Marcas que a pequena sempre exibia como se fossem suas medalhas e contava orgulhosamente:

- Meu irmão tentou me matar quando eu tinha dois anos!- disparava.

Ah, o irmão? Bom , o choque foi difícil. Ele aposentou a fantasia de múmia com olhos arreganhados por algum tempo e prometeu que iria cuidar dela, da sua irmazinha falante e também única companheira de brincadeiras, além dos livros, é claro , os quais ele sempre preferia.

Bem que ele tentou outras vezes quebrando o nariz dela aos nove e deixando ela a pé em uma estrada por não conseguir aprender a dirigir...brincadeirinha!

Mas continuaram brincando, digo , brigando pelo amor da mãe, pela coca-cola, pelo assento no carro, pelo último grão de arroz..

O fato é que ela cresceu graças a tudo isso. O lençol branco , o Galaxy do seu Antoninho, o colo da mãe, as fadas, a boneca Dalila e o creme da Helena Rubstein.



Beijo cicatrizado

da melind@

    Fio  Entrei no absoluto e simples vagar do tempo. Invadi os espaços aparentes que reservei para um dia. Olhei minha própria fa...