quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Jung na cozinha...

Os móveis estavam todos encaixotados ou quase e havia muito trabalho a fazer. Era uma tarefa que detestava. Aliás ela detestava qualquer atividade que exigisse paciência . Provavelmente por isso estava destinada àquela incumbência. Acordara já muito depois das oito e aquela bagunça estava lá , no meio da cozinha. Caixas, prateleiras e utensílios de toda ordem jogados para todo lado.
Bem , o importante era começar, já que não havia outro jeito. Havia acordado irritada com barulho de latidos de cachorro e não sabia por que nem havia tomado café da manhã, partira direto para aquela tarefa ingrata. Nunca ficaria sem a primeira refeição. Possivelmente naquela desordem não seria lógico comer.
Acomodou-se no chão e começou a mexer nas embalagens. Reparou que alguns armários eram novos , mas outros eram antigos. Melhor dizendo, algumas eram coisas velhas e inútes e nem sabia porque estavam ali para ser relembradas. Armários são lugares apropriados para guardar , armazenar e ordenar. Talvez o fato de estarem desmontados significasse que não queria guardar mais nada ou que precisava reorganizar os compartimentos.
Havia alguns objetos que pareciam ser de um outro tempo de sua história, outra vida, pode ser. Não eram dali. Aliás, começou a perceber que as peças dos móveis não se encaixavam porque pertenciam à mobílias que não eram daquela casa e sim de outras. Haviam mobílias de outras cozinhas de sua vida. É lógico que não poderiam ser montadas. Estavam ali porque foram descuidadamente deixadas para trás. Jogadas em algum porão empoeirado onde ficaram depositadas.
Pensou por que uma cozinha? Por que não poderia ser um dormitório ou qualquer outro cômodo. Cozinha! cozinha?
Bom, cozinhas são lugares onde se elabora coisas. Mistura-se ingredientes, sente-se aromas e sabores, dedica-se um tanto de energia e investe-se bastante criatividade a fim de que o produto final seja saboroso. É um lugar de sensações . Adorava cozinhas. A simbologia ganhava contexto. Uma linguagem quase deste mundo.
A cozinha é o carro-chefe de uma casa. É o lugar que centraliza o todo. As pessoas passam ali muitas vezes e sempre saem modificadas. Então cozinhas são lugares onde elaboramos e sintetizamos.
Continuou tentando juntar as peças e percebia ítens cada vez mais estranhos , que talvez nem devessem estar ali. Mais uma vez era um desses enigmas junguianos aparentes.
Continuou encontrando surpresas. Na parte atrás das gavetas havia compartimentos secretos. Havia muitos compartimentos secretos. Não sabia se devia mexer neles. O que será que continham?
Súbita apreensão! Temeu seus próprios mistérios!Parecia a atmosfera de um filme de David Lynch.
Por que ela colocara compartimentos secretos nos móveis de sua própria cozinha? E que tantas cozinhas eram aquelas? Afinal, ela nem conhecia tantas. Eram pedaços de sua história que estavam ali representados por aqueles ítens, formando um quebra-cabeças de partes acessórias. Havia partes que não eram dela. Eram cozinhas que havia partilhado ou visitado. Algumas evidentes , outras acidentais. A falsa sensação de familiaridade foi se tornando distante.
Continuou analisando. Havia muitas substâncias diferentes agrupadas ali. Talvez muitas das substâncias da vida dela que estivessem um tanto confusas ficassem claramente visíveis naquele entulho. Partes dela espalhadas arquetipicamente no chão. Alegorias transcendendo a aparência exterior da realidade. Eram madeiras escuras, metais, pedras,papelão, vidro, concreto. Ela.Um processo alquímico de transmutação.
Uma cozinha, um lugar onde se prepara o alimento. Aquilo que comemos, que degustamos , saboreamos, que engolimos e incorporamos finalmente a nós. Algo que nos nutre.Alguém por aí já disse " somos o que comemos". Nem tudo que ingerimos é tão bom. Poderia ser um sintoma de congestão ou indigestão.
Se "os sonhos são as manifestações não falsificadas da atividade criativa inconsciente" segundo nosso mestre Jung, sua atividade criativa ia bem, obrigado!
Acho que começou a se aproximar. Eram frações de tempo dela, de sentimentos dela , de sonhos dela que estavam querendo se encontrar ou , ao menos, estavam precisando ganhar coerência.
Eram partes da sua obra que se mostravam inadequadas para ser executadas e talvez precisassem de reciclagem. Bocados, nacos de sua biografia ali, como uma receita de refogado ou picadinho , esperando para ser terminada.
Algo caiu, um barulho que não está neste script.Wake up!Bocejo longo.
A cozinha parecia estar no lugar!!
Se, em mais uma lição do grande mestre dos sonhos"Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro acorda."......
O que terá acontecido com Laura Palmer?
beijo desperto
da melind@

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Love Story


Recentemente li sobre a morte de Erich Segal, o que me remeteu ao seu mais famoso romance " Love Story". Sucesso na década de 70 foi vertido para o cinema com roteiro do próprio Segal e direção de Arthur Hiller , trazendo Ali Mac Graw e Ryan O'neal(lindo) como protagonistas da tragédia do amor ceifado pela morte.

Jenny Cavilleri e Oliver Barret tornaram-se parte da minha história. Assisti ao filme várias vezes só para jorrar córregos de lágrimas ao som da estupenda música(Francis Lai) , que faria chorar até um iceberg, e ouvir a frase lacrimosa de Jenny "amar é jamais ter que pedir perdão". E claro, chorar a morte recente da minha cachorra pequinesa.

Estas aliás foram as cepas da maior impostura lançada contra as relationships do mundo real.

Amar é justamente contornar os meandros dos erros e falhas. É transigir, perdoar e ser perdoado. O amor não é perfeito, nem nós. Que bom!!

A década de 70, aliás, foi marcada por títulos de igual pieguice folhetinesca, mas não menos adoráveis como " Uma janela para o céu", onde a heroína ficava paraplégica, "Sunshine" e " Irmão Sol ,Irmã Lua", todas trágédias do mesmo quilate, mas que não são páreo para Love Story.

Receitas manjadas? Nada disso! Muda-se o cenário e as tintas e lá vai ..

Incrivelmente, a história triste que enlutou Oliver soterrou também a carreira dos atores, que nunca mais fizeram trabalhos de grande projeção.

Para mim Ryan O'neal e Ali Mac Graw estarão sempre lá, sob a neve mostrando a face mais promissora do amor e ilustrando essa gota de devaneio que nunca estanca.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O ponto

Na escuridão da estrada era possível ver as mãos agarradas, como se fossem uma da outra. Ele apertava firme a mãozinha delgada que conhecia de olhos fechados. Sentia seu calor. Lembrava de quando aquela mão firme e macia segurava na sua, tão pequena e insegura. Os carros não olhavam para eles ali parados no acostamento em uma brecha, refletidos nos faróis. O olhar dele era ignorado por ela , que ainda trazia os óculos antigos com lentes fotocromáticas e chapéu de ráfia agarrado na cabeça. A bolsinha caprichosa de usar aos domingos e a roupa fresca escolhida para enfrentar um dia tão quente. Tão quente como a muito não se via. A mata fechada às suas costas ainda guardava o calor da tarde, embora já passasse muito das nove.

Ele olhava os carros indiferentes enquanto esperavam o coletivo. As luzes desenhavam seus corpos estancados ali no silêncio. Carros desfilavam como em um cortejo costurado na estrada.Pensava o quanto ela já estava frágil e se afligia ao pensar que logo estaria chegando sozinha à casa que um dia foi tão acanhada. O tempo já havia levado tantas coisas. Seus tentáculos engoliram a juventude e o futuro dela. Levaram também o que devia sequer ter existido. Ela iria só, segurando seu corpo rechonchudo, ao encontro da casa humilde com uma velha televisão na rua 12. Um dia já havia sido um lugar pobre, agora era indiferente. Pensava que um dia ela iria para sempre.

A mão aproveitava para um suave carinho, sem que ela percebesse. Não queria que sentisse sua apreensão, pensamentos sombrios caminhavam por ele. Não queria. Por tantas vezes quis voltar naqueles dias para sentir de novo a mão dela vestindo a sua de guri, orgulhosa . Não importava que fosse magro e desajeitado, não importava se riam dele ou se não tinha quase amigos, tinha a mão vaidosa da mãe.

O coletivo foi parando definitivo e ela explicou a ele com o olhar que ia ficar sempre bem. Deixou-o ali abraçado na noite fresca a espera da chuva, ainda com o calor dos seus dedos na palma da mão. Os carros continuavam cegos sem se importar com seus destinos.

Olhou até que virasse um ponto em meio aos raios que se desenhavam no céu. Talvez quisesse deter o ônibus e guardá-lo nos olhos como uma tela.

    Fio  Entrei no absoluto e simples vagar do tempo. Invadi os espaços aparentes que reservei para um dia. Olhei minha própria fa...