segunda-feira, 19 de julho de 2010

Tóc tóc: ainda tem jeito.

Mais uma tarde de chuva torrencial e frio. A tinta que colore o cenário continua sendo o cinza e o barulho é aquele silêncio entrecortado pela água, sem raios ou trovões, sem brilhos ou empolgação qualquer da natureza. As gotas se desprendem do nada e se acumulam na calçada. Carregam restos das histórias recentes dos personagens que passaram por ali, especialmente as cascas que deixaram pra trás. As cascas descartadas daquilo que o homem não incluiu, restos de gente em meio as sobras e lixo.

A campainha acusa uma presença estranha.

Um rapaz magrinho coberto por roupas acinzentadas pelo dia , sob um peremptório guarda-chuvas quebrado e carregando pelo menos oito sacolas contadas de "lixo" aparece emoldurado pelo postigo.

No outro lado do cenário a impaciênca pergunta:

- Sim! - embora preferisse dizer- Olha hoje eu não tenho nada para lhe ajudar.- Mas respeitou o script e esperou.

-O carro é daí ?- perguntou o rapaz surpreendendo a interlocutora entediada enquanto apontava para o automóvel estacionado em frente.

Parece que ele não decorou seu texto. Mudou o tom. Sua fala deveria ser uma história triste sobre a irmã ou a mãe necessitada, ou ainda sobre a filhinha doente ou a falta de uma passagem.

- Não , não é daqui não . Por quê? - perguntou a curiosidade desconfiada.

- O vidro está aberto! Está molhando tudo!- disse o jovem definitivo.

Errou o texto novamente. E agora?

- Ah! Pois é. Não sei de quem é não!- E ficou muda!A vergonha ficou muda e vazia. Não conseguiu improvisar.

Segurou entre os dentes o "mas de qualquer forma obrigado", que não conseguia pensar.

Faltou perguntar:

- Por que um garoto assim, carregado de sacolas de restos de lixo, com frio e molhado pela chuva, embuchado de "nãos" e achincalhado por todas estas portas fechadas para universos quentinhos e aconchegantes está preocupado com a janela do carro de alguém?

Sentiu aquela sensação estranha e a divagação na mente. O preconceito não se conforma por ter errado a mão.

Qual seria a história por trás daquele rosto. O que haveria escondido naquele olhar gentil encharcado de privação.

Por que ela esperou uma atitude menor daquele ser humano?

Sem mais palavras aquele garoto se foi, andando sob a chuva e carregando (junto com as sacolas de papelão)sua história de certa grandeza diante daquele cenário irritadiço e alagado de contrariedades pela terceira tarde consecutiva de chuvas e intenso frio.

Antes de se afastar esboçou um sorriso de Monalisa, que a deixou com munição para dar um tiro no pé.

O proprietário do carro , que certamente estaria indignado quando o encontrasse inundado(justamente no banco do motorista) não saberia que um benfeitor humilde e anônimo, talvez até faminto, tentara avisá-lo contrariando a ordem vigente do "cada um por si".

Certamente o garoto negro de capuz cinza e olhar molhado não hesitou sobre diferenças, apenas foi solidário e gentil.

- Hei moça: Tóc tóc! Ainda tem jeito!

beijo afogado

da melind@

    Fio  Entrei no absoluto e simples vagar do tempo. Invadi os espaços aparentes que reservei para um dia. Olhei minha própria fa...