domingo, 22 de agosto de 2010

Os dois ficaram ali a contemplar aquela aurora roubada do não existir.

O coração ficou muito acelerado e as batidas pareciam alcançar vários decibéis. As mãos suavam de forma incomum e sentia que precisava conter-se. Era quase choro. Exalou tudo o que restava e caiu num sono exótico.
Quando deu por si estava em uma praia , onde não era dia nem noite. Aqui nem lá. O lugar tinha uma certa familiaridade porque sentia-se agora muito à vontade. Havia muitas tendas espalhadas entre a margem o o calçadão. Após o calçadão, que se estendia como um colar separando pescoço e corpo, não havia mais nada. Pelo menos um nada que possa ser considerado.
Nas tendas havia muito material sobre uma nova ciência onde se aprende conceitos sobre si mesmo.
Andava por entre as bancas que anunciavam produtos que não se compra e misturava-se a todos que passavam por ali, mas que não podiam ser vistos por suas perguntas. Ao seu lado caminhava o seu espírito, orgulhoso por mostrar-lhe o mundo sob o qual ele tinha total domínio.
Naquela praia entre dois mundos eles se bastavam. Seguiam juntinhos em um silêncio revelador, enquanto ele mostrava seus rostos entre os rostos.
Apesar da escuridão, havia muita luz, mas não claridade. Ao mesmo tempo ela pensava que sua memória era traiçoeira. Havia lacunas preenchidas com peças sobressalentes. Já não tinha certeza de cores.
Percorriam os passos em meio a cidade invisível onde tanto acontecia apesar de não ser exata.
Por vezes parecia um passeio comum sob o Sol. Como nas feiras livres, vestindo tênis e sentindo o cheiro da vida.
O espírito, às vezes, murmurava palavras ininteligíveis no ouvido dela. Não queria abrir mão do silêncio. Ela sorria e pensava que não podia esquecer do que não sabia. Como seria o dia seguinte, será que lembraria das certezas?
Ela queria papel e caneta. Por um instante lembrou de quando escrevia "Tamo" a um namorado a fim de não comprometer-se inteiramente com o amor. Bobagem lembrar daquilo agora -pensou.
Sentiu-se tola! Mas ali não havia sentires para tola. Tola não faz sentido.
Aqueles símbolos intrigantes que não estavam naquele instante. Um porta-retratos para não colocar fotografias, muitos livros sem título. Uma vida inteira de nada. Pessoas inexistentes, como o cavaleiro de Ítalo Calvino, que apesar de ser uma armadura vazia, sentia, sofria e pensava mais do que os que realmente existiam.
Lembrou novamente do quanto adorava feiras livres. Estava pelo avesso de uma feira livre onde só via o que não existia e nem por isso era menos intenso e tranbordante.
Avançar pela noite com seu companheiro a lhe mostrar o tanto que não existia e mesmo assim estava por todos os lados e em todos os tempos, era exótico até para ela.
Estranhamente, como não poderia deixar de ser, percebeu que tudo aquilo que tanto insistia em não existir, estava lá, possível e escancaradamente incógnito entre a realidade e o sonho que não foi sonhado.
Livros que estavam ali para não ser entendidos e todas aquelas frases apagadas justapostas para que definitivamente desistisse de encontrar o que não existia, mas que acontecia como uma avalanche que remove violentamente a capa da superfície e a atrita com seus fragmentos arrancados até que a força cesse.
Os dois ficaram ali a contemplar aquela aurora roubada do não existir . Se olharam bem dentro um do outro e acordaram.
beijo inexistente
da melind@

    Fio  Entrei no absoluto e simples vagar do tempo. Invadi os espaços aparentes que reservei para um dia. Olhei minha própria fa...