sábado, 6 de fevereiro de 2010

Pela primeira vez...


Ontem enquanto eu trafegava pela cidade vazia, por conta da temporada de verão, eu observava enquanto as pessoas andavam e eu ali parada no semáforo. Num determinado instante, que pareceu uma eternidade, eu começei a vê-las. Não estava apenas olhando e visualizando uma imagem. Eu estava vendo e percebendo que elas não estavam sós. Estavam acompanhadas de sua história, de seus estados mentais, de seus sentimentos. Foi uma sensação inédita e poderosa. Eu joguei minha atenção inteira para aquele instante e constatei o quanto somos incríveis. Dava para enxergar as pessoas por dentro. Pela forma do olhar, pelo modo de carregar os ombros. Pela maneira de dispor o cabelo. Havia intensidade e um grande afeto no meu olhar. O que me leva a crer que estou mais madura. Um olhar sem julgamentos. Um olhar que buscava apenas estar. O fato é que eu não estou sozinha ao experimentar os efeitos como vejo o mundo. Estavam lá, naquelas expressões todo o sentimento , toda palavra, toda perda e o medo. Também estavam o desalento , a raiva, a garra e paixão. Cada um trazia algo preponderante, que eu vou chamar aqui de energia. Era algo que extravasava pelo espaço e pelo ar. Eram textos apócrifos, não eram nomes, eram sentires levados por rostos e corpos apenas naquele estado de coincidência e perenidade no qual os fatos se emaranhavam . E assim aconteceu, um momento de mergulhar no sinal e simplesmente ver, não mais olhar.

Acordei com uma buzina atrevida e impaciente e segui meu caminho com aquela sensação me engolindo.

Parece que foi mais uma primeira vez na minha vida, dentre tantas primeiras vezes nas quais experimentamos os eventos inéditos. O primeiro sabor, o primeiro gosto, enfim.

Fiquei absoluta naquele episódio. Lembrei e revivi muitas primeiras vezes e precisei colocar aqui no blog na melinda esta minha experiência insólita como gosto de chamar.

Acho muito feliz isto e sou intensamente grata a minha história por ter me trazido até aqui , com todos os pajens que sopraram as brisas delicadas me contando a "verdade".

Eu imediatamente recordei da generosidade da vida ao liberar em pequenas doses o nosso aprendizado.

Agradeci aos livros, aos filmes, às pessoas aparentemente estranhas a minha história. Aos bons, aos úteis e até aos inúteis que foram meus mestres, meus mentores e meus professores desta arte tão original e individuada que é viver.

Voltei na minha história e na da minha família, posto que são inseparáveis e me veio uma frase de Tolstói que dizia " Todas as famílias felizes são parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira". Eu certamente substituiria infelizes por inadaptadas. Não gosto e nem acredito na expressão infeliz ( que na verdade pressupõe uma felicidade oclusa, escondida, que ainda não aflorou, mas que está lá).

Sempre vejo minha história com o cuidado de quem ainda não viu tudo e não encontrou todos os detalhes imersos no contexto.

Lembrei da "primeira vez " que experimentei a estranheza e eu ainda era bem criança quando registrei essa impressão.Foi na casa da minha avó paterna e eu existia com os filtros rigorosos da minha mãe.

Minha avó paterna morava em uma casa antiga no centro da cidade e , por mais que eu então não gostasse disso, me parecia um pouco com ela. A casa era daquelas que além de antiga estava velha. Tinha um pé direito eterno e os degraus da entrada eram de pedra. A construção portuguesa era daquela cujos quartos de dormir passavam uns por dentro dos outros e havia um corredor comprido como aqueles que aparecem em filmes de horror. A diferença é que os horrores deste eram afetuosamente humanos.

Minha avó vivia só com sua história porque ela nunca era comentada. Era como se sua vida tivesse começado muito depois . Foi lá que eu encontrei pela primeira vez a diferença. Embora não compreendesse muito bem do que se tratava. Eu apenas interagia como mandava a boa educação , mas sentia-me cheia de questões e muito desconfortável.

A casa tinha um galinheiro, como acontecia ainda em algumas casas, em pleno centro da cidade. Era um parque de diversões sob este ponto de vista. Pátio enorme, com galpão e galinheiro. Não lembro de ter cachorro. Talvez.

Dentre os habitantes daquela casa havia duas mulheres, suas filhas, mas que não eram mulheres como as outras. Eram mulheres meninas. Eram mulheres em seus corpos magros e bem formados, mas pensavam e agiam como meninas. Ambas eram deficientes mentais. Minha avó teve nove filhos, dos quais apenas três sobreviveram. Sendo que as duas meninas não tiveram tanta sorte. Quando as identifiquei, ainda muito pequena, eu não pensava, apenas brincava com aquelas meninas mulheres. Mais tarde fui ficando intrigada e não conseguia encontrar respostas.

Uma era doce e adorável. Gesticulava com seus dedinhos tortos e falava uma linguagem de sinais improvisados pela necessidade de comunicação com o mundo. Quando eu chegava corria para mostrar pintinhos que haviam nascido e plantinhas que cuidava. Era um ser humano maravilhoso e sensível. Talvez dela eu tenha herdado minha paixão por bichos de toda ordem. A outra era mais rude e embora também tivesse problemas na fala, se expressava com mais facilidade e costumava ser estridente e incômoda. É possível que nunca tenha entendido sua condição ou percebido a si mesma.

Elas me apresentaram pela primeira vez esta história de ser diferente. Elas não eram criaturas abjetas que precisassem ficar escondidas, mas minha avó não fazia muita questão de expô-las.

E minha avó? Bem a história dela também é diferente.Uma portuguesa aparenemente frágil, mas escondendo uma determinação de rochedo é o que ela era.

Ela sempre contava que uma noite sonhou que seu amado( meu avô) lhe dizia:

--Mosa( como a chamava), eu subo o morro e desço o morro e não consigo encontrar o caminho de volta para casa!

Soube pouco tempo depois que ele havia morrido de uma infecção por conta de uma ferida em uma perna, que lhe provocou uma septicemia. Estava em uma área serrana no estado de São Paulo e foi sepultado lá mesmo.

Meu avô , também imigrante português, embora tivesse uma boa alfaiataria, vivia em viagens e deixava sua mosa solitária entre suas crias diferentes.

Ela recebeu a última carta sem que soubesse ainda o destino de seu consorte. A premonição no sonho de Mosa não lhe revelara que teria que enfrentar o mundo só. Aos quarenta anos , uma viúva, no ínicio do século XX, com duas filhas que ela dizia "doentes". Meu avô não a deixou em situação fácil. Não tinha condições para manter-se.

Embora costurasse e cerzisse primorosamente, não achou que fosse apropriado trabalhar e o resultado foi colocar o filho mais velho , que havia concluído os estudos, a frente do sustento da família. Apresentando, meu pai.

Mosa manteve-se viúva até a morte. Fechou-se em copas, em roupas escuras e meias grossas que lhe escondiam as pernas.Ensinou às meninas mulheres sobre hábitos e tarefas domésticas.

Foi lá entre as mulheres meninas e a casa com galinheiro que vivi pela primeira vez o contato com o diferente. Alguns sentimentos estranhos e histórias que pareceriam bizarras. Foram boas mestras.

Um beijo de gratidão

da melind@


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